Penas e recompensas futuras
Revista da Imprensa
REENCARNAÇÃO – PREEXISTÊNCIA

(Segundo artigo – Vide a Revista de novembro de 1869)

A idéia da reencarnação é tão natural que, não fosse a tirania exercida sobre nós pelo hábito das idéias contrárias que a educação nos impôs desde a infância, nós a aceitaríamos facilmente. “Não é mais surpreendente nascer duas vezes que uma; tudo é ressurreição na Natureza.” Estas palavras que Voltaire (Vide a Princesa da Babilônia) põe na boca da fênix, no momento em que renasce das próprias cinzas, não vos parece, em sua simplicidade e em sua enérgica concisão, a expressão mesma da verdade?

Quantos problemas em nosso destino, impossíveis de resolver de maneira satisfatória por outra doutrina e que esta nos dá a solução racional! Quantas obscuridades ela esclarece! Quantas dificuldades afasta!

“Na verdade, diz Montaigne, acho que estou tão longe de Epaminondas que ultrapassaria Plutarco de bom grado; e diria que não há mais distância deste àquele homem, como não há distância de tal homem a tal animal; e que há tantos graus de espíritos quanto o número de braças que existem daqui até o céu.”

De fato, quanta distância entre o hotentote estúpido e o inteligente europeu! entre Dumolard e Sócrates!

Como explicar essa desigualdade no desenvolvimento intelectual e moral, que em certos casos se seria tentado a chamar desigualdade da Natureza, se não se admite entre o espírito inferior e o espírito superior a mesma relação que existe entre a criança e o homem feito, e por vezes entre o homem e o anjo? Se não se admite que o último viveu mais que o primeiro e pôde progredir num maior número de vidas sucessivas?

Dirão que é um efeito da diferença da organização física e da educação? A isto responderíamos que estas causas podem explicar, no máximo, as superioridades aparentes, mas não as reais.

O órgão serve mais ou menos bem à faculdade, mas não a dá; já o demonstramos inúmeras vezes. De tal sorte que um espírito muito desenvolvido, num corpo mal conformado, pode fazer um homem muito ordinário, ao passo que um espírito relativamente menos adiantado, servido por bons órgãos, fará um homem que lhe será em aparência muito superior. Mas essa falsa superioridade, que não considera senão a faculdade de expressão, e não o poder de pensar, iludirá apenas o observador superficial, mas não enganará o espírito penetrante. “Não padece dúvida, diz J. Simon, de que existem espíritos de escol cujo valor sempre ficará desconhecido, por lhes faltar a faculdade de expressão. Vê-se essas
almas cheias de idéias, que o vulgo despreza e que passam por inferiores e desprovidas de razão, embora os espíritos penetrantes captem algumas vezes em sua linguagem os traços de uma força incomparável. Pergunta-se, pensando nelas, se não se está na presença de um gênio encantado sob uma forma que o impede de manifestar-se em sua plenitude e em seu esplendor.”

Aliás, não é sabido que Sócrates havia recebido da Natureza um corpo cujos impulsos o teriam levado à devassidão, e que o filho de Sofrônico dele fez um sábio, um modelo para os homens, em vez do libertino que a Natureza parecia querer fazer?

Quanto à educação, não temos diariamente sob os olhos a prova de que a sua influência é grande? Não obstante, ela não chega a mudar completamente a natureza do homem, fazendo de um celerado um prêmio Monthyon e de um idiota um Newton.

Quantas pessoas honradas que jamais receberam lições de ninguém! quantas não se viram obrigadas a combater os ensinos perniciosos! e quantos velhacos infames foram educados com todos os cuidados imagináveis! Cômodo não era filho e discípulo de Marco Aurélio? e nos devemos ufanar das lições dos jesuítas, mestres de Voltaire, da independência do pensamento do discípulo, de seu horror pela intolerância e pelo fanatismo religioso, e de seu desprezo pelas superstições?

Quem foi o preceptor do lenhador Lincoln, de seu sucessor, o alfaiate Johnson, e de seu ilustre compatriota, o ferreiro Elihu Burrit, o promotor da sociedade da paz universal?

Não há homens dos quais se pode dizer que se lembram, mais do que aprendem? Mozart, por exemplo, nasce grande músico; Pascal, aos nove anos e sem jamais ter lido um livro de Matemática, chega, sozinho e sem o auxílio de nenhum mestre, até à trigésima segunda proposição de Euclides e inventa a Geometria!

Em 1868 os jornais franceses nos distraíram, segundo um jornal inglês de Medicina – Quatterly – com um fenômeno muito estranho. É uma menina cuja história o Dr. Hun deu a conhecer. Até os três anos ela era muda, não conseguindo pronunciar nem mesmo as palavras papai e mamãe. Depois, de uma hora para outra começou a falar com uma loquacidade extraordinária, mas numa língua desconhecida que não guardava nenhuma relação com o inglês. E o que há de mais surpreendente é que ela se recusa a falar esta última língua, a única, no entanto, que lhe falam, obrigando àqueles com quem vive, seu irmão, por exemplo, um pouco mais velho que ela, a aprender a sua, na qual se encontram algumas palavras de francês, embora, no dizer dos pais, ninguém jamais as houvesse pronunciado diante dela.

Como explicar esse fato de outro modo a não ser pela lembrança de uma língua que esta criança teria falado numa existência anterior? – É verdade que se pode negar o caso. Mas a menina existe; é um jornal sério, um jornal de Medicina que o
relata, e a negação é um meio muito cômodo, ao qual, talvez, se recorra com muita freqüência. Em muitos casos ele é o equivalente do diabo, esse Deus ex machina, que chega sempre na hora certa para explicar tudo e dispensar o estudo.

Aliás, há homens que afirmam ter conservado a lembrança de outras existências. Isto é mais surpreendente. A carta do Sr. Ponson do Terrail, de que já falei antes, é uma prova disto. Pode-se dizer também que ele quis fazer uma brincadeira. Mas, o que não poderão dizer?

O poeta Méry afirmava igualmente que se lembrava de ter vivido sucessivamente em Roma, no tempo de Augusto, e na Índia, onde tinha sido sacerdote brâmane. Também teria sido uma brincadeira?

Mas o que não pode ser uma anedota é o fato seguinte, do qual fui testemunha. Eu estava em Pau, na casa de um parente. No mesmo quarto em que estava, achava-se uma das filhas de minha parenta, de dois anos e o filhinho do vizinho, operário encadernador, que não passava de três anos. As crianças brincavam e com elas eu não me ocupava quanto, de repente, minha atenção foi atraída para uma altercação singular que se deu entre eles. O pequenino garantia, irritado e ruborizado contra a menina, que se recusava a nele crer, que se lembrava de ter sido soldado e haver sido morto. Dava detalhes e citava os lugares. Achei que devia intervir. Perguntei-lhe quem era seu pai na época a que se referia. Respondeu que então seu pai não era seu pai: ele é que era pai. E como eu insistisse que me explicasse por que, tendo sido morto, estava vivo novamente, e pequeno, depois de ter sido grande, respondeu: “Nada sei quanto a isto; fui soldado e me mataram; eu era grande e agora sou pequeno. Foi Deus quem o quis.” E batia com o pé, enraivecido, porque nos recusávamos a crer em suas palavras.

No dia seguinte eu quis retomar com ele a mesma conversa. Olhou-me com ar espantado e nada compreendeu, como se eu lhe tivesse falado grego.

Como supor que uma criança dessa idade quisesse se divertir sobre um tal assunto? Não é mais razoável pensar que o véu que nos oculta o passado se tivesse erguido por alguns instantes para ela?

A lembrança de existências passadas, embora muito rara, o é menos do que se pensa; a História nos fornece vários exemplos, e não é impossível que, como eu, algum de meus leitores já tenham tido ocasião de o constatar.

Pergunto, agora, depois de todas essas considerações e de todos esses fatos reunidos, aos quais poderíamos agregar muitos outros, se eles não são a conseqüência legítima e irresistível da realidade da reencarnação, e que não é surpreendente que em todas as épocas da História tenha havido espíritos elevados que nela acreditavam?

Além disso, quando se reflete seriamente, a gente se convence não apenas que esta crença é verdadeira, mas que é impossível que não seja de outro modo.

Se é falsa, como compreender a justiça de Deus? Reconhecemos o absurdo das penas eternas; mas, mesmo com penas e recompensas temporárias, para que pudessem ser aplicadas com precisão não seria preciso – já que não há uma só prova sofrida por todos nas mesmas condições de duração, com os mesmos obstáculos a vencer e dificuldades a superar – que cada um entrasse na liça armado com as mesmas faculdades e carregando o mesmo peso? – Pois bem, todos sabemos que não é assim. Precisamos demonstrá-lo?

Assim, o único meio de sair da dificuldade é reconhecer a veracidade desta idéia tão natural e tão justa, a de que as provas são múltiplas; que aqueles que vemos entrar na liça com maiores faculdades são velhos lutadores que as adquiriram mediante esforços anteriores, enquanto os que nela entram com faculdades menores são debutantes que não têm o direito de invejar as riquezas de seus irmãos mais velhos, já que só depende deles a sua aquisição, desde que sigam seu exemplo.

Quanto às várias posições sociais, não passam de provas diversas às quais o espírito é submetido, conforme a necessidade, e pelas quais passamos alternadamente, ora como pobres, ora como ricos, ora poderosos, ora fracos, ora senhores, ora escravos, ora dotados de uma organização física que, deixando às nossas faculdades todo o seu impulso, nos permite representar um papel brilhante na cena do mundo; ou, ao contrário, constrangidos por órgãos rebeldes e condenados a uma impotência e a uma inferioridade tanto mais penosa quanto podemos, algumas vezes, ter o sentimento de nossa real superioridade.

Aliás, o céu não pode ser um lugar fechado, que Deus nos abre ou nos fecha ao seu bel-prazer; não podemos concebê-lo senão como um estado superior da alma, que depende de nós atingir, aos nos purificarmos de nossas máculas, chegando a esse patamar intelectual e moral que está acima da natureza humana e que designamos sob o nome de natureza angélica.

Sim, nós somos, para me servir de uma expressão de Dante, a lagarta destinada a formar a angélica borboleta em seu vôo para a justiça, sem que nada lhe possa opor obstáculos!

Todavia, se quisermos refletir nos esforços que isto exige, não direi o aniquilamento, mas apenas a diminuição do menor dos nossos defeitos, e o crescimento, não a aquisição da menor de nossas qualidades, poderemos compreender quantas existências são necessárias para preencher a distância que separa o hotentote, espírito talvez no começo da Humanidade, de Sócrates, anjo sem dúvida descido dos céus para nos servir de modelo e guia.

O esforço, eis a lei, é a condição indispensável do progresso do Espírito; e, nas fases inferiores de sua existência, esse esforço necessário não poderia produzir-se sem as reencarnações. Demonstrá-lo-ei no artigo seguinte, ao tratar da natureza das penas e recompensas futuras.

Esperando, creio poder fechar este artigo dizendo que a única coisa que nos deve preocupar nesta Terra, desde que ela é lugar de prova, é tirar o melhor partido possível da posição que ela está, na qual nos colocou aquele que, melhor que nós, conhece o de que precisamos e não pode ter preferências por nenhum de nós. “Lembra-te, diz o escravo Epicteto, de desempenhar com cuidado o papel que o soberano senhor impôs: breve, se for breve, longo, se for longo. Se ele te deu a personalidade de um mendigo, trata de bem desincumbi-lo; sede manco, príncipe ou plebeu, se ele o quis. Teu negócio é representar bem o teu papel, e o dele de o escolher.”

Victor Tournier

R.E. , dezembro de 1869, p. 503